O ser humano só dá valor às coisas mais simples quando essas faltam.
Eu fui um desses
seres humanos que sentiu a falta de entrar num supermercado e encontrar as
prateleiras repletas de legumes frescos e com aquele aspeto delicioso. Sou a Catarina, tenho 25 anos e nasci com leucinose, ou MSUD, por isso, não posso consumir proteínas. A doença não me impediu de ser professora de português e de espanhol fora de Portugal e agora cá dentro.
Neste ano letivo, concorri pela primeira vez no concurso de docentes em Portugal, como queria trabalhar concorri para todo o lado (Açores, Madeira e Continente), no entanto, poderia não ter colocação devido a não possuir tempo de serviço.
Fiquei radiante no dia 28 de agosto quando recebi um correio eletrónico do ministério da educação a comunicar que eu tinha conseguido colocação como professora de português num horário completo na escola de Santa Cruz das Flores na ilha das Flores nos Açores. No meio da felicidade, veio o stress de encontrar voo, casa e fazer as malas, tudo isto em três dias.
Na mala levei o que podia entre roupa, alguns utensílios de trabalho, comida hipoproteica (os produtos do instituto de genética) e a fórmula em pó para a minha patologia, a viagem foi tranquila, mas muito cansativa por ter tido de apanhar três aviões.
Quando cheguei fiquei num hotel e no dia seguinte fui para a casa nova, onde tive de arrumar as malas e ter a minha primeira ida ao supermercado da vila um pouco a 1km de minha casa a pé, mais ou menos. Encontrei poucos legumes e fruta nessa ida ao supermercado, alguns dos que encontrei estavam em estado desagradável, outros se aproveitavam e uns brócolos congelados.
O tempo foi passando e chegou o Inverno com a chuva, vento e tempestades
tropicais que impediam que o barco que abastece a ilha com alimentos frescos e
congelados vindo de Lisboa ou de Espanha não atracasse devido ao mau tempo, o
que quer dizer que não havia legumes para mim.
Era uma correria
para se ir às compras aos dois supermercados que havia na minha vila, havia um
outro muito melhor que ficava a 20km da minha casa e só havia acesso com carro
ou um autocarro que passava duas vezes por dia. O que me valia foi comprar a
mais o que encontrava em melhor estado e congelar ou até comprar congelado.
Algumas pessoas davam-me alguns alimentos que tinham nas suas hortas de forma a
que não me faltasse nada. Uma família fazia o pão para toda a ilha e vivia a 20km de mim e aceitaram o desafio de fazer um pão para mim com a farinha hipoproteica que tinha trazido na mala e ficou uma maravilha, a senhora Rosa fazia-mo com muito carinho e nunca me pediu nada em troca pelo pão fresquinho todas as semanas.
Após a passagem do furacão Lourenzo as coisas que já eram difíceis tornaram-se ainda mais, o único porto que abastecia toda a ilha fora destruído com a passagem dele e demorarão anos para o reconstruir. Começou a faltar coisas na ilha desde alimentos, combustível e garrafas de gás. Era como se vivesse na segunda guerra mundial, vinham poucos alimentos e as pessoas iam a correr cada vez que chegava um avião com mantimentos ou um barco mais pequeno com contentores que levavam semanas a chegar, daí alguns legumes já virem impróprios para consumo, as prateleiras vazias apareciam nos supermercados e a escassez de frutas e legumes.
O que me safava eram os congelados tanto comprados como os que eu tinha congelado quando comprei fresco para ter nestas alturas difíceis, fui ao Porto a consultas e quando voltei levei meia mala de legumes comigo além de fórmula.
As reservas de comida hipoproteica estavam a meio e senti a necessidade de pedir ao instituto mais uma caixa de 14kg, mas depois de semanas e semanas à espera essa caixa nunca chegou.
Consegui averiguar que estava presa numa das ilhas principais à espera de um barco para cá e como não era prioridade não tinha data de chegada ao destino, eu comecei a fazer contas às reservas que tinha na dispensa, visto que a ilha não tinha correio marítimo.
O meu espanto sobre as condições desta ilha não se ficou por aqui, não existe hospital aqui só um centro de saúde que possui três médicos, os casos mais graves são evacuados por um avião militar no dia seguinte ou quando o tempo meteorológico assim o permitisse.
A ilha é isolada e o pouco que produz exporta, tem paisagens magníficas de turismo natural intacto.
Fiquei doente na ilha e tive que renunciar ao meu primeiro contrato de trabalho por razões de saúde e pela impossibilidade e dificuldade em adquirir a minha alimentação e cuidados médicos adequados ali. As pessoas que conheci lá tentaram fazer-me sentir em casa e que nada me faltasse.
Dizer adeus foi duro, custou-me deixar a escola e os meus alunos que tanto gostava e me sentia integrada, mas a minha segurança e a minha saúde tiveram prioridade.
Quando concorri, nunca imaginei que nos Açores haveria tanta desigualdade entre as ilhas e que as Flores apesar de linda fosse tão isolada, num Portugal em pleno século XXI.
Agradeço a todas as pessoas que ajudaram a que nunca me faltasse nada, nem um pãozinho especial e quentinho vindo da padaria, nunca me irei esquecer de vocês guerreiros e sobreviventes.
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